Em 30 de março de 2007, a Conferência dos Religiosos e Religiosas do Brasil, vinculada à Igreja Católica, decidiu institucionalizar as diversas ações e iniciativas de enfrentamento ao tráfico humano através da criação da ‘Rede um Grito Pela Vida’ somando os esforços de distintas congregações religiosas.
Uma característica importante da ‘Rede um Grito Pela Vida’ é a incorporação de diversos seguimentos da sociedade civil organizada, de maneira especial grupos de mulheres, jovens, estudantes de toda as áreas, profissionais do serviço social, da sociologia, da psicologia, do jornalismo, dentre muitos outros.
A ‘Rede um Grito Pela Vida’ representa a apropriação, por parte da sociedade, dos documentos oficiais do Estado que reconhece a gravidade do problema e cria mecanismos para o seu enfrentamento de modo especial através do Decreto nº 5.948/06, de 26/10/2006 que estabelece princípios, diretrizes e ações consagrados na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Em nível institucional estava em curso também o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas publicado em 2008, fruto do trabalho interinstitucional da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, na ocasião vinculas à Presidência da República.
Entretanto, os documentos oficiais por si só, apenas reconheciam a gravidade do problema e indicavam algumas formas de operacionalização como a implementação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, vinculados ao Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, em parceria com os governos estaduais, baseados em três eixos estratégicos: prevenção ao tráfico, repressão e responsabilização dos seus autores e atenção às vítimas. Infelizmente, por parte do Estado, boa parte dos documentos “não saíram do papel”. Justamente por isso, faz-se necessário e imprescindível a atuação da ‘Rede um Grito Pela Vida’ que ora chama a atenção das instituições governamentais provocando a sua atuação, ora desperta a sociedade para a reflexão e para o enfrentamento ao tráfico de pessoas atinge 45,8 milhões de seres humanos em todo o mundo.
A ‘Rede um Grito Pela Vida’ vem atuando de maneira especial no campo da prevenção despertando a sociedade frente a este crime internacional com ramificações em praticamente todos os países do mundo que abastece diariamente a chamada indústria internacional do sexo, permite a permanência do trabalho escravo, promove a venda de órgãos, a servidão doméstica, a mendicância e o comércio de crianças. Diante de tamanho desafio, a Rede vem priorizando o enfrentamento ao tráfico para fins de exploração sexual comercial no qual as mulheres, crianças e jovens representam maior incidência.
Na Amazônia a ‘Rede um Grito Pela Vida’ vem atuando desde 2011 tendo à frente dos trabalhos a Irmã Roselei Bertoldo da Congregação das Irmãs do Imaculado Coração de Maria que se tornou uma importante referência na Região Norte, juntamente com uma equipe intercongregacional, interinstitucional e multidisciplinar que congrega pessoas de diversos seguimentos da sociedade e profissionais das diversas áreas.
Uma característica importante da Rede na Amazônia é a prioridade do trabalho nas bases que vem provocando importantes impactos na sociedade rompendo o “silêncio histórico” com relação a muitas formas de exploração e abusos sexuais de crianças e adolescentes inseridas na mira das grandes rotas internacionais do tráfico humano que atuam amplamente nesta região.
Uma diversidade de trabalhos vem sendo realizada nos grupos de base priorizando a reflexão e o acesso às informações pouco divulgadas nas comunidades das periferias das grandes cidades ou das margens dos grandes rios e lagos da Amazônia. Simultaneamente são realizadas importantes campanhas que despertam a sociedade para o debate do tema, de maneira especial atingindo espaços de grande atuação estratégica das rotas do tráfico. Nessa perspectiva, a Rede vem contribuindo para a desnaturalização das diversas formas de exploração e abuso sexual que tornam a sociedade vulnerável ao tráfico humano.
As campanhas permanentes promovem um enfrentamento direto à atuação das rotas de tráfico que até então agiam livremente na Amazônia sem maiores impedimentos. O resultado disso é que a sociedade vem identificando e denunciando os aliciadores e aliciadoras que atuavam irrestritamente nas festas temáticas de grande circulação de turistas internacionais como por exemplo no Festival Folclórico dos Bumbás de Parintins.
Com a atuação da Rede também à tona a denúncia das estratégias de aliciamento vinculadas ao turismo sexual permitido na região atraindo importante contingente de turista do sexo masculino para o turismo de selva, de pesca e outras modalidades no mínimo suspeitas de vínculo com as rotas internacionais do tráfico de pessoas. Com isso, as famílias, a escola, a comunidade e os movimentos sociais passaram a se despertar para essa realidade e começaram a somar esforços numa grande rede de proteção e prevenção ao tráfico nas realidades mais esquecidas da sociedade aonde as políticas públicas geralmente não chegam.
Corajosamente a Rede vem atuando na denúncia do tráfico de pessoas vinculado à exploração sexual comercial e, não raro, ao abuso de crianças, cometidos nas diversas modalidades de embarcações que singram os grandes rios da Amazônia transportando mercadorias e passageiros em meio a uma forma antiga de exploração sexual no percurso das longas viagens.
Outra atuação importante da Rede na Amazônia é o acompanhamento de realidades mais críticas como aquelas dos garimpos irregulares que recrutam importante quantitativo de mulheres para a prestação de serviços sexuais em condições de exploração e situação de tráfico.
Esses garimpos movimentam a chamada economia garimpeira movimentada nas fronteiras da Amazônia incluindo necessariamente os países limítrofes, e representam espaços privilegiados de atuação das rotas internacionais do tráfico de pessoas. São áreas de difícil acesso que exigem recursos humanos e econômicos qualificados para atuar principalmente na investigação e denúncia da exploração sexual comercial.
Representam grande risco à vida dos membros da Rede que se encontram ameaçados (as) de morte em várias regiões da Amazônia por sua coragem e profetismo diante de uma modalidade de crime tão perversa que representa enorme lucratividade para seus executores.
Entretanto, o papel da Rede na Amazônia alcança ultrapassar esses limites e configura-se como espaços de escuta e acolhida às pessoas, principalmente as mulheres e jovens que recorrem aos agentes da Rede para denunciar os abusos e violações a que são submetidas, para desabafar seus sofrimentos e encontrar uma palavra amiga e acolhedora, um ombro para se recostar por uns instantes e chorar o desespero do abandono, das desilusões, dos medos e desesperos a que são submetidas no submundo do tráfico humano.
São muitos os desafios assumidos pela ‘Rede um Grito Pela Vida’ na Amazônia e muitas são as pessoas que se somam nesta grande rede de proteção, de denúncia e exigência de punição aos criminosos, de fortalecimento da sociedade no enfrentamento e de provocação às autoridades e instituições para que reconheçam a incidência do tráfico humano nessa região e tomem as providências institucionais cabíveis e necessárias acompanhadas de políticas públicas de prevenção permanente.
Vida longa à ‘Rede um Grito Pela Vida’!
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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