Chegamos a Manaus em 1973, quando ainda não havia completado 4 anos. Ficamos na casa de um primo do meu pai nos primeiros dias até que ele, o meu pai, comprasse uma casa. Não demorou, foi questão de dias, e lá estávamos nós em uma palafita em um beco que não entrava carros. Os moradores mais antigos lembravam com saudade dos tempos em que lavavam roupa no igarapé que servia naqueles tempos como hoje de esgoto sanitário.
Primeiro, os moradores construíram casinhas que serviam de sanitário; depois, construíram casas sobre o córrego, o que causou assoreamento e desvio do leito, passando toda a área a alagar durante as chuvas. As casas, de barrotes de madeira, eram reconstruídas de tempos em tempos para que fossem levantadas e assim ficassem livres de alagamentos. Nos dias de chuva, era uma festa para a garotada, que caia naquelas águas imundas com o pretexto de retirar o lixo dos barrotes e evitar a subida das águas até o assoalho das casas.
Apesar do sofrimento, havia um cheiro de felicidade no ar. Os moradores criaram áreas minúsculas de lazer onde era possível jogar futebol, empinar o papagaio de papel, brincar de barra-bandeira, geral, garrafão, cangapé, pião, bolinha e tantas outras brincadeiras de criança e adolescente.
Mas a lembrança maior e que está viva na memória é a dos dias 25 de dezembro. Grande parte da garotada ganhava carrinhos de plástico. No Dia de Natal, todos se reuniam no beco da frente, faziam ruas com meio-fio na areia e passavam a manhã inteira a brincar, até que os pais chamassem para o almoço. Era uma grande festa, muito mais animada que a da noite de Natal.
Depois de alguns anos, chegou o asfalto no beco. E os nossos natais nunca mais foram os mesmos. Mas o beco continuou sendo para nós um ambiente familiar. Na década de 1990, seu Zé do Tito chegou com a família para morar por aproximadamente três anos. Dizia que aquele local era uma cidade à parte no meio da cidade. Nele se encontrava de um tudo.
Ele se foi do beco e depois de uns anos, se foi para sempre do meio de nós. Como ele, muitos moradores também se foram, ou pela morte – como meu irmão Raimundo e meu pai – ou “expulsos” pelo Prosamim (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus), criado na gestão de Eduardo Braga.
Minha mãe esperava também sair, mas até hoje o Prosamim não fez o que prometera: indenizá-la pela casa dela, que já não é mais a palafita, mas uma boa casa de alvenaria com dois pisos. Diante da falta de perspectivas e com as alagações cada vez mais impiedosas, a família comprou um terreno em outro bairro e, durante os dois últimos anos começou a construir uma nova casa.
Ela queria muito que o Natal de 2016 fosse na nova casa, mas não foi possível. Por isso, fizemos o último Natal no beco da minha infância. Como foi diferente. Em anos mais recentes, o Natal no beco não tem mais o mesmo glamour dos anos de um passado mais distante, quando todos saíam de suas casas para abraçar os vizinhos; quando os mais próximos visitavam as casas para partilhar a ceia. Nada disse ocorre mais. Mas o Natal em família ainda é mantido. E talvez por se o último Natal naquele lugar em que vivemos e convivemos por um longo período de 43 anos, foi um dos melhores dos últimos anos.
Valmir Lima é jornalista, graduado pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (Ufam), com pesquisa sobre rádios comunitárias no Amazonas. Atuou como professor em cursos de Jornalismo na Ufam e em instituições de ensino superior em Manaus. Trabalhou como repórter nos jornais A Crítica e Diário do Amazonas e como editor de opinião e política no Diário do Amazonas. Fundador do site AMAZONAS ATUAL.
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