“Nas paragens da história, o passado” mostra que o papa João Paulo II teve participação na composição do Hino do Amazonas. Quando Manaus foi confirmada como uma das cidades por onde o pontífice passaria durante a visita ao Brasil, em julho de 1980, verificou-se que não se poderia cantar para o papa o hino estadual oficial porque a obra ainda não existia.
Dessa maneira, o governador José Lindoso (21/08/1920 – 25/02/1993) resolveu criar um rápido concurso nacional para a composição do hino oficial do Estado. No dia 11 de abril de 1980, o governo anunciou que o poeta Jorge Tufic Alaúzo havia sido o vencedor do concurso de letra do Hino do Estado do Amazonas. Tufic concorreu com outros sete escritores e recebeu como prêmio 50 mil cruzeiros – em valores atualizados pelo INCC, o equivalente hoje a R$ 15.997,93.
A comissão julgadora foi composta por cinco membros: maestro Nivaldo de Oliveira Santiago (Conselho Estadual de Cultura), escritor Waldemar Batista de Salles (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas), historiador Mário Ypiranga Monteiro (Academia Amazonense de Letras), poeta Antísthenes de Oliveira Pinto (Clube da Madrugada) e o escritor Jayme Pereira (União Brasileira de Escritores – Seção Amazonas).
No mês de julho de 1980, Nivaldo Santiago e Jorge Tufic viajaram à Brasília levando carta-convite do governador do Amazonas para o genial maestro Cláudio Santoro (23/11/1919 -27/03/1989) musicar a letra do hino. O amazonense aceitou a encomenda e, em poucos dias, entregou a composição.
A ideia do hino ser executado pela primeira vez na visita do papa foi abandonada e a nova data da estreia passou a ser a Semana da Pátria, em setembro.
Com acompanhamento da banda da Polícia Militar, a primeira apresentação oficial do hino estadual ocorreu na Praça do Congresso, no dia 1º de setembro, por um coral de 2,5 mil vozes, formado em sua maioria por estudantes do Instituto de Educação do Amazonas (IEA) e da Universidade de Tecnologia do Amazonas (Utam).
O governo José Lindoso ainda promoveu um clássico entre Rio Negro e Nacional, no feriado de 5 de setembro, com portões abertos no estádio Vivaldo Lima, e o hino estadual também foi executado para o povo. Cada clube recebeu 200 mil cruzeiros. O “Rio-Nal do hino” ainda foi o pioneiro no televisionamento de um jogo entre times amazonenses do Vivaldão, pela TV Educativa. Outra estreia da partida foi a da torcida “gay do Naça”, surgida para fazer frente à “Galo-Gay” e que levou ao estádio uma bandeira de 30 metros de comprimento. O Nacional venceu o jogo, de virada, por 2 a 1. Lúcio Santarém abriu o placar para o Galo (18 min. 1ºT); Fernandinho empatou (15 min. 2ºT) e Dedé marcou o gol da vitória do Leão.
Uma das histórias mais pitorescas envolvendo o poeta Jorge Tufic ocorreu no dia 14 de outubro de 1986 e foi retratada na reportagem “Fila para disputar carne”, publicada no dia seguinte no Jornal do Comércio.
Naquele período, o governo do presidente José Sarney tentou combater a inflação controlando os preços. Incontáveis donas de casa do Brasil inteiro se tornaram as “fiscais do Sarney”, vigiando e denunciando os estabelecimentos comerciais que não obedeciam o congelamento dos preços.
O resultado prático da medida foi o sumiço de vários produtos e mercadorias, que magicamente apareciam se o consumidor aceitasse pagar um ágio, um valor bem mais alto que o preço tabelado.
No Amazonas, um dos produtos que desapareceu por alguns meses foi a carne. Segundo a reportagem, o consumo médio mensal de carne de Manaus, na época, era de duas mil toneladas.
Antes que os carnívoros se organizassem para tomar o poder – e com as eleições se aproximando -, o governo estadual teve de intervir. Adquiriu a maior quantidade disponível e distribuiu os quartos de boi para serem vendidos nas feiras da cidade. Para a feira de Petrópolis, por exemplo, foram levados 24 quartos de boi. Para o Mercado Adolpho Lisboa, 50 quartos.
Funcionários da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz) ficaram responsáveis pela organização das filas. Ficou estabelecido o limite de três quilos de carne com osso por pessoa, cobrados a 26 cruzados novos. Em valores atualizados (INCC), o equivalente a R$ 28,17.
Em todas as feiras se formaram quilométricos alinhamentos. Na feira do bairro de Aparecida, nem a forte chuva fez a aglomeração diminuir. Lá, também houve confusão porque pessoas da mesma família se revezavam na fila para driblar a limitação da cota. Também houve revolta de quem avaliou ter recebido mais osso do que carne. Um indivíduo que se identificou como delegado e fazia menção de estar armado furou a fila.
Entre as centenas de pessoas que disputavam seu quinhão dentre os 80 quartos de boi disponíveis na Aparecida estava o poeta Jorge Tufic.
O poeta contou à reportagem que aguardou a sua vez por mais de duas horas e salientou: “Os naturalistas dizem que comemos cadáveres, mas é nosso hábito alimentar que nos põe nessa situação”. Sim, a fila demorou tanto que o poeta até fez reflexões morais sobre o consumo de carne vermelha; meditou a respeito dos efeitos de se ceder à tentação da carne; sobre as vantagens e contrariedades de se tornar vegetariano; e se o homem tem mesmo direito de se alimentar de outras espécies. Um típico momento de “filasofia”.
Na época, Tufic era presidente do Conselho Estadual de Cultura, mas não deu “carteirada”. Apenas esperou sua vez “sem orgulho, nem falsa nobreza”. Era mais um do povo sofrendo as consequências de uma decisão do governo. Mais um que, no dia a dia, precisa fazer valer o verso do hino: “só triunfa a esperança que luta”.
Uma expressão popularizada nas redes sociais como resposta aos que se “acham demais” e tentam aparentar mais importância do que têm é “quem é você na fila do pão?”. Ou seja, quem você pensa que é se está na mesma situação que os demais? A fila foi feita para igualar a todos.
Alguns dias depois de ter seus versos escolhidos para o hino estadual, Jorge Tufic lançou o livro “Os mitos da criação e outros poemas” e concedeu uma interessante entrevista para a jornalista Maria Amélio Mello, publicada no Diário do Paraná, de 23 de abril de 1980.
No texto, é relatado que Jorge Tufic nasceu em Sena Madureira, no Acre, no dia 13 agosto de 1930. Descendia de pais libaneses (de Batrun). Em 1943, transferiu-se para Manaus, onde trabalhou no comércio e fez primário à noite.
Respondendo sobre o papel da poesia e dos poetas em momentos conturbados, Tufic assevera: “As lutas da poesia estão na razão direta das conquistas do homem, do chão que pisa aos universos que imagina”.
O autor do hino do Amazonas, falecido na semana passada (14), disse ainda sonhar com um futuro em que será a “poesia tão necessária quanto o pão e o teto. Isto é uma questão de tempo”. E encerra: “E quem diz tempo, diz luta”.