.A ressocialização de encarcerados não é uma mera questão, mas na realidade uma tarefa bastante desafiadora, embora não falte quem considere isso uma missão impossível.
Pelos poucos classificados como irrecuperáveis, tende-se na maior parte das vezes a estigmatizar quase todos como incorrigíveis ou impossíveis de reabilitação social. Ainda mais levando em conta o domínio de presídios por facções criminosas e as precárias condições do sistema prisional vigente no país. Nesse cenário, falar em ressocialização de presos torna-se algo polêmico quando não é desde logo tratado como mero idealismo ou devaneio.
A ressocialização não é um processo de curtíssimo prazo nem imune às influências do meio. O que é necessário fazer para ressocializar presos? Como estamos socializando as pessoas aqui fora? O que crianças, adolescentes e jovens estão aprendendo no cotidiano?
Em seguida, considerando essas questões, poderemos abordar o problema da ressocialização de internos do sistema prisional.
Para ressocializar alguém encarcerado, seja provisório seja condenado, é essencial reaprender a socializar pessoas entre nós, livres e lícitos, quer dizer, formar gente para conviver em sociedade de modo justo e solidário.
Embora polêmica, a ideia de ressocialização suscita muitas questões relevantes. A primeira delas, talvez, seja a necessidade de levar em conta o meio ou o contexto sociocultural no qual se pretende inserir o indivíduo ou grupo em processo de ressocialização. Não é possível socializar ou ressocializar alguém num contexto cultural ou ambiental abstrato. Que condutas, valores, habilidades e formas de proceder serão requeridas do indivíduo para que o mesmo possa conviver, por exemplo, em nossa sociedade?
De algum modo somos todos socializados, seja num ambiente em que prevalece a cultura de licitude e cidadania seja noutro em que predomina a cultura da “esperteza”, de violência e de criminalidade. Inexiste quem não tenha sido socializado pelo meio social no qual convive, haja vista que nascemos sem saber falar, pensar, andar ou valorar qualquer coisa. É no ambiente cultural no qual somos formados que aprendemos a significar as coisas. Internalizamos um modelo de sentir, de pensar e uma linguagem com a qual nos expressamos e interpretamos o mundo a nossa volta. Somos levados a desenvolver capacidades e habilidades a partir desse ambiente social, sobretudo no que se refere à socialização primária. A sociedade molda o indivíduo tanto quanto este interage para dinamizar a cultura e a sociedade na qual convive. Como nos expressaríamos caso tivéssemos nascido e sido formados numa comunidade ou grupo indígena? Ou se criados entre grupos africanos? Guardadas as exceções, estaríamos sujeitados à socialização dessas sociedades. Uma vez internalizado os padrões culturais, o indivíduo ou grupo é socializado e isso repercute em suas inclinações e expressões individuais. Somos assim moldados culturalmente pelo meio social no qual vivemos. Isso se chama socialização. No ambiente prisional não é diferente. Se nada for realizado em sentido contrário, não há como evitar o aprofundamento da socialização dos presos numa cultura de viciamento, de violência e de criminalidade, na qual os próprios estabelecimentos penais estão mergulhados.
Por isso é socialmente relevante o esforço de buscar meios e processos de ressocialização humana a partir dos cárceres, ou seja, reabilitar pessoas para o convívio social na sociedade em que serão reinseridos. Os encarcerados não estão isolados ou apartados da vida social, ainda mais no contexto da sociedade de tecnologia da informação na qual nos inserimos. Não é mais possível fazer de conta que a sociedade nada tem a ver com a ressocialização de seus encarcerados. Não fazer o suficiente para promover a ressocialização de presos e apostar tão somente no “depósito de gente”, no descarte ou na assepsia social dos mesmos. É ir armando pólvora a execução penal até o momento em que ocorram as catástrofes e efeitos de grave violência no lugar social dos cárceres.
O que fazer? Como atuar nessa difícil realidade dos presídios? Quais os métodos e processos adequados voltados à ressocialização dos presos, sobretudo para uma cultura de licitude, justiça e liberdade? Como fomentar uma cultura de cidadania a partir do interior dos cárceres? O que fazer, afinal, com os encarcerados?
A resposta a tais questões dependem das escolhas feitas pela sociedade e pelo próprio Estado no sentido de universalizar as condições para socializar as pessoas (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) para uma cultura de licitude, de justiça e de liberdade, em síntese, uma cultura de cidadania. Trata-se de atuar de modo a contribuir para formar pessoas capazes de conviver e reproduzir a cultura de decência, respeito e dignidade humana.
O descaso com a ressocialização de pessoas cativas é um perigoso retrocesso civilizatório. A perdurar a omissão frente à expansão da cultura criminógena em todos os segmentos sociais, cuja expressão mais radical dá-se talvez no interior dos presídios e delegacias que ainda funcionam como estabelecimentos penais, a lei do retorno opera contra a própria sociedade e contra o Estado. Reproduz-se a violência e a criminalidade, reeditando crises cíclicas de insegurança pública, a partir dos cárceres.
Um dos maiores problemas do sistema prisional do país, ao lado da superlotação e das precárias condições dos estabelecimentos penais, é a ociosidade viciante que reforça a cultura do crime nos presídios e unidades de privação de liberdade. Convertem-se esses espaços em meros depósitos de gente, que aguardam pelo descarte final. Daí a insegurança máxima das prisões, as violentas estadas nas cadeias, os motins, as rebeliões, as incessantes tentativas de fuga etc. Como transformar os estabelecimentos penais em espaços decentes de privação de liberdade? Como ocupar beneficamente o preso no interior do cárcere? De que maneira a prisão pode cumprir minimamente sua função ressocializadora e funcionar em favor da sociedade, que arca com os enormes encargos de sua manutenção?
É fundamental retomar a perspectiva ressocializadora da privação de liberdade. O processo de ressocialização requer a aprendizagem de novos padrões valorativos e a resignificação da experiência de vida de cada prisioneiro ao ponto de alcançar-lhes a visão de mundo, os hábitos, as práticas, os costumes, as atitudes, enfim, a mente e o comportamento. A ressocialização de presos é projeto desafiador, requer compromisso e qualificação à altura, não bastando apenas boa vontade e experimentalismo.
Vários segmentos organizados, profissionais e autoridades já defendem a conversão dos espaços de encarceramento em unidades de educação e de saúde integral, estendidos tanto a presos condenados quanto a provisórios, sobretudo considerando a dramática realidade prisional brasileira. O caro e superlotado sistema penitenciário não pode continuar se limitando a manter centenas de milhares de indivíduos em depósito, ociosos, operando em desfavor da segurança da sociedade, a qual arca com os enormes custos do mesmo. Um sistema carcerário que paga caro para fazer com que grande parte dos internos se torne ainda mais perigosa, capaz de causar maiores danos à sociedade, e apenas reproduza o ciclo da crescente reincidência na prática da violência e da criminalidade.
A educação e a saúde no cárcere são também instrumentos de ressocialização do preso, tendo em vista a convivência social livre, lícita e segura. Injustificável é negar a possibilidade ressocialização humana, numa perspectiva de cidadania, sem que nada tenha sido feito efetivamente nesse sentido. É imprescindível que se dê início a algo de concreto, sobretudo a projetos cujas ações sejam objetivamente mensuráveis, com vistas à ressocialização de presos. Sem isso é impraticável a formação de elementos ou de variáveis que permitam a análise e a avaliação de resultados no que se refere à ressocialização de internos do sistema prisional.
Ressocializar ou resignificar com o propósito de reinserir ou reintegrar o preso à convivência social livre e lícita requer o desenvolvimento de processos de aprendizagem e reeducação nas unidades prisionais, praticamente convertendo-as em espaços não somente de punição, mas sobretudo de saúde, de formação e de reabilitação humana para o convívio social. Esse processo de adaptação ou de condicionamento cultural precisa ser contínuo. E deve iniciar desde os primeiros instantes que o indivíduo ingressa no cárcere, na condição de preso, ainda que provisório.
Com isso, quer-se ocupar o lugar atualmente dominado pela cultura do crime, do vício, da ociosidade e da violência, fazendo prevalecer a cultura da licitude e do desenvolvimento humano no interior dos estabelecimentos prisionais.
Enfim, transformar os presídios em espaços de reeducação e saúde mental ou integral é eixo estruturante para um projeto de ressocialização consequente. Apesar da grave realidade de dominação dos presídios pelas facções criminosas, esse “território” pode ser reconquistado, sobretudo quando diante de ações articuladas do Estado e da sociedade, em especial voltados para ocupar efetivamente os encarcerados. Essa tarefa não se limita aos policiais, agentes penitenciários e agentes de disciplina, mas depende de iniciativas de gestão e de participação da sociedade nos serviços de execução penal (cidadãos, professores, religiosos, autoridades, esportistas, empresários, artistas, psicólogos, médicos…). A ressocialização é um processo que visa formar o indivíduo para ser pessoa, profissional e cidadão, aspectos imprescindíveis ao desenvolvimento da sociedade. Antes de sentenciar que o desafio de ressocializar presos é mera ficção, deve-se ao menos buscar pôr em execução algumas providências ou medidas efetivas para corroborar ou não tal posicionamento.
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