“Muitos anos mais tarde, quando o verdadeiro Hitler se matou e assassinou a esposa em algum subterrâneo de Berlim, eu (o médico) lembrei-me da estranha coincidência que o pobre açougueiro de Yorkville tivesse antecipado tão de perto o futuro da humanidade”, disse o médico romeno Jacob Levy Moreno (1892-1974) ao relatar um dos mais curiosos casos psicoterapêuticos de todos os tempos.
Para estudiosos da sua obra, Moreno deveria estar ao lado de Jung e Freud no panteão dos grandes estudiosos dos mistérios da mente humana. De fato, ele não se tornou muito conhecido, mas entre as suas contribuições está a criação do psicodrama, da sociometria e da terapia de grupo.
A inspiração do psicodrama veio do teatro grego, no qual havia elementos como o coro, que dialogava com o protagonista; e o segundo ator (deuteragonista), que reforçava a ideia de que o conflito seria trabalhado na ação dramática e não mais na narração. Os dois instrumentos auxiliavam o protagonista na ação de evidenciar o conflito do roteiro e solucioná-lo.
Moreno pôde testar suas ideias sobre as potencialidades terapêuticas do teatro com o caso, batizado por ele de “psicodrama de Hitler”.
Por volta dos anos 1940, um autoritário homem insiste até ser atendido pelo médico. Moreno relata que o indivíduo tem “quarenta e poucos anos. Ele me parece conhecido. Ele me encara desafiadoramente. Ele dá arrepios”.
Indignado por não ter sido imediatamente reconhecido, o homem declara rispidamente: “Meu nome é Adolf Hitler”. Nesse momento, Moreno reconhece a semelhança. Depois, o médico pergunta a razão de ter sido procurado. O homem responde: “Você não sabe? Ela não lhe contou?”, e continua: “Minha esposa”.
É quando Moreno se lembra de que há alguns meses, uma mulher o havia procurado e contado que seu marido estava “doente”, que seu nome era Karl e era açougueiro, mas que há algum tempo passou a se autodenominar “Adolf”, garantindo ser o verdadeiro Hitler.
Na ocasião, Moreno sugeriu à mulher que encaminhasse seu marido até ele. Foi o que ela fez. O homem então explica ao médico que ele é o real Hitler e que o outro é um impostor, que o outro lhe roubou tudo o que ele tinha. Promete a Moreno que se ele o ajudar, o promoverá a “chefe de todos os médicos do III Reich”.
Para alguém que aparentava ser doido, os tratamentos administrados costumavam ser: internação compulsória, camisa-de-força, choques periódicos, injeções constantes e trepanação. Já no “hospício” de Moreno (Beacon House) o mais importante cômodo era o palco psicodramático. Era no tablado, com o paciente vivenciando seu delírio e interagindo com os outros de acordo com o roteiro da sua mente, que era possível “libertar uma pessoa doente da forma mais extrema de solidão, a alucinação”.
Assim, Moreno (que tem origem judia) faz muito mais do que “não contrariar o maluco”. Além de tratá-lo como o ditador nazista, proporciona ao paciente que interaja com os enfermeiros como se eles fossem Goering e Goebbels. Moreno comenta que “É notável como o homem os aceita sem perguntas, fica feliz ao vê-los e aperta-lhes as mãos.” O tratamento estava iniciado.
Na primeira sessão, a plateia do teatro – formada por alunos e pacientes de Moreno – passa a ser o “povo alemão”. Para eles, o paciente anuncia que vai recuperar sua coroa. Depois, “retorna de bote à Alemanha” e termina numa “cena emocionante à beira do túmulo de sua mãe”.
Sua esposa contrata os enfermeiros que desempenhavam os papéis de Goering e Goebbels para conviverem com Karl em sua residência. Um momento curioso ocorre quando “Hitler” esbofeteia “Goering” e este prontamente revida. A partir daí, Goering ganha a confiança do paciente e se torna o único com permissão de chamá-lo de “Adolf”.
Ao longo das semanas de tratamento e de sessões de psicodrama, Karl desempenha tão bem o papel, que até surge a dúvida se ele não era mesmo Hitler. Ele inclusive toma decisões que o próprio líder nazista tomaria depois.
“Muitas vezes o víamos (…) lutando com os astrólogos por uma resposta quando ficava em dúvida, orando a Deus por ajuda (…) temendo ficar louco antes que conseguisse alcançar sua grande vitória. (Abalado pelo sentimento) de que havia fracassado e de que o Reich seria conquistado pelos inimigos declarou que era chegado o momento de pôr fim à sua vida. Pediu que morresse com ele todos os líderes da Gestapo que lotavam a plateia, até o último homem. Ordenou que (…) fosse executada Crepúsculo dos deuses (ópera de Richard Wagner). Atirou em si próprio na frente da audiência”.
Ainda bem, era só dramatização. O tratamento seguiu até ele pedir por um barbeiro. Durante o corte de cabelo, o paciente diz asperamente: “Tire isto daqui!” apontando para seu bigode.
Quando o barbeiro raspa o bigode, o paciente olha para todos e apontando para seu rosto exclama: “Sumiu, sumiu, sumiu, acabou! (Começando a choramingar) Eu o perdi, perdi! Por que foi que eu fiz isso? Não deveria ter feito isso!”.
Apesar do lamento, o corte do bigode é essencial para a cura. Depois disso, o paciente apresenta mudanças corporais, de postura, até pedir que todos parassem de chamá-lo Hitler e lhe chamassem pelo seu nome mesmo: Karl.
A Conmebol está ignorando a raiz “açougueira” da Taça Libertadores e anunciou, semana passada, que a final da competição passará a ser disputada em jogo único a partir de 2019. A edição deste ano será a última com decisão em duas partidas. A ideia é imitar a Liga dos Campeões, inclusive com a partida final ocorrendo sempre num sábado.
A questão é que querer renegar a sua identidade para ter a ilusão de ser outro não costuma ser sinal de boa saúde mental. É sempre bom ter cuidado com as “penugens” e “buços” estranhos que desejam afixar em nossos rostos e mentes.
O ideal é perceber que para atingirmos o que devemos ser, necessitamos assumir quem somos. Tudo pode começar “raspando o bigode”.
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