Em 4 de abril de 1968, Martin Luther King era covardemente assassinado na sacada de um hotel em Memphis, Tennessee, no sudeste dos Estados Unidos. A data torna-se um marco mundial da luta contra o racismo. Cinquenta anos depois de seu assassinato, o tema do racismo continua sendo um grande desafio para a sociedade moderna.
Passados 100 anos da abolição da escravidão nos Estados Unidos, a sociedade continuava legalmente dividida entre dois grupos humanos. A legislação vigente permitia essa separação da sociedade e legitimava a divisão dos espaços territoriais, sociais, culturais e políticos. Como se houvesse duas sociedades num mesmo território, com orientações totalmente divergentes. Politicamente, o grupo dos brancos tinha supremacia sobre os negros. Aos brancos eram garantidos direitos e acesso aos bens e serviços da sociedade. Aos negros os mesmos direitos eram negados e tocava-lhes os trabalhos considerados mais sujos e menosprezados pela sociedade. Eram punidos se frequentassem lugares a eles proibidos como bares, restaurantes, transporte público, escolas, banheiros…
Martin Luther King e centenas de outros ativistas, inclusive brancos, não podiam aceitar que uma sociedade que se dizia tão avançada economicamente, se mantivesse sob uma legislação tão arcaica e desumana. O racismo fazia a sociedade retroceder na história.
Com doutorado em Teologia Martin Luther King tornou-se um importante expoente teórico sobre o que acontecia nos Estados Unidos e nos demais países, como o Brasil, que aboliram a escravidão, mas, não garantiram direitos iguais aos afrodescendentes. Pastor protestante de uma Igreja Batista, começou a refletir com os negros a sua condição na sociedade e, aos poucos, comandava atos de protesto contra o racismo em todo Estados Unidos e sua liderança passou a ser respeitada no mundo inteiro. Em seus discursos altamente bem elaborados, questionava a irracionalidade e imbecilidade de uma legislação que separava a sociedade em grupos humanos sobrepostos e negava aos negros direitos básicos no exercício da cidadania como o direito ao voto e à candidatura aos cargos e empregos públicos.
A memória do cinquentenário de sua morte, celebrada no mundo inteiro, reconhece um dos maiores legados de sua luta antirracista: o questionamento dos fundamentos do racismo. Na condição de refinado teórico dos direitos humanos e sociais, Martin Luther King questionava a legislação racista justamente porque não haviam fundamentos legais para sua legitimidade. Tampouco não haviam fundamentos científicos para embasar as relações e comportamentos racistas no interior das sociedades.
Uma das definições clássicas do racismo reproduzida pelo dicionário infopedia, o define como “uma teoria sem quaisquer fundamentos científicos que defende a existência de uma hierarquia entre grupos humanos, definidos segundo caracteres físicos e hereditários como a cor da pele, atribuindo aos grupos considerados superiores o direito de dominar ou mesmo suprimir os outros considerados inferiores”. De acordo com a mesma fonte, na prática, significa a “atitude conscientemente preconceituosa e discriminatória contra indivíduos de determinadas etnias” pelo simples fato de serem “diferentes”.
Baseado nessa perspectiva teórica, Martin Luther King concluiu que “nada justifica o racismo”. E com essa concepção, liderou movimentos antirracistas em todo território americano e inspirou outros grupos no mundo inteiro a aderir à mesma luta entendendo o racismo como uma das maiores ignorâncias da moderna sociedade capitalista. Ou seja, o racismo representa um atraso da humanidade em todos os sentidos, pois, não possui nenhum fundamento e contribui para a desumanização da sociedade tornando-a reduzida em seu próprio conceito de sociedade ao abandonar os princípios da igualdade ferindo os preceitos da modernidade.
É inegável que o assassinato de Martin Luther King tenha sido um fato político e uma demonstração de forças racistas. Entretanto, longe de esmorecer o movimento antirracista, sua morte inspirou a luta de muitos outros grupos que se levantaram em diversos lugares do mundo em defesa da igualdade de direitos e contra os princípios racistas irracionais e retrógrados.
Outro legado importante deste ativista, ainda bastante praticado por seus seguidores e seguidoras é o método de organização baseado na cultura da paz. Ele não defendia o contra-ataque por parte dos negros. Se agissem da mesma forma, estariam se igualando aos brancos em seu irracional comportamento. Essa metodologia despertou, inclusive, a adesão de inúmeros brancos que não concordavam com a legislação racista e passaram a somar-se com os negros na mesma luta. O embate que ele propunha baseava-se no campo teórico e era pautado nos princípios dos direitos universais. Por isso seus discursos incomodaram tanto a ponto de encomendarem seu assassinato político.
No campo das ideias, o pensamento de Martin Luther King continua vivo e muito presente, insistindo num “mundo em que a cor da pele não tenha importância”. Insistindo que, “mesmo as noites totalmente desprovidas de estrelas podem anunciar a aurora de uma grande realização”. De maneira especial a realização de tantas lutas contra o racismo que inspiraram, dentre tantas outras vozes, o poema de Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra, compositora, coreógrafa e desenhista, expoente da arte afroperuana nesta composição:
Me gritam negra!
Tinha sete anos apenas, apenas sete anos,
Que sete anos! Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua me gritaram: negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
“Por acaso sou negra?” – Me disse. Sim!
“Que coisa é ser negra?” Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
Negra! E me senti negra, negra!
Como eles diziam: negra!
E retrocedi. Negra! Como eles queriam. Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos.
E mirei apenada minha carne tostada. E retrocedi. Negra!
E retrocedi. Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo, e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas minha pesada carga. E como pesava!
Alisei o cabelo, passei pó na cara, e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra: Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Neeegra!
Até que um dia em que recuava, recuava, recuava tanto que já ia cair. Negra! Negra! Negra! E daí?
E daí? Negra! Sim! Negra!
Sou Negra! Negra! Negra! Negra sou!
Negra sim! Negra sou! Negra! Negra! Negra! Negra sou!
De hoje em diante não quero alisar meu cabelo.
Não quero!
E vou rir daqueles, que por evitar – segundo eles – que por evitar-nos algum dissabor, chamam aos negros de gente de cor. E de que cor negra!
E como soa lindo! Negro!
E que ritmo tem! Negro! Negro! Negro! Negro! Negro!
Afinal! Afinal, compreendi. Afinal, já não recuo.
Afinal, avanço segura! Afinal, avanço e espero!
Afinal, bendigo aos céus porque quis Deus que negro âmbar fosse minha cor. E já compreendi!
Afinal, já tenho a chave!
Negro! Negro! Negro! Negro! Negro!
Negra sou!
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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