O homem contemporâneo demanda, cada vez mais, sua própria superação. Mesmo que não tenha consciência de como possa realmente ser diferente, e que seja imensurável sua liberdade de percorrer novos caminhos. O paradigma do sujeito ensaia, cada vez mais, o que doravante resultará no seu sucumbir.
Não é novidade que se possa identificar que cada era, definida essencialmente por sua base material de meios de produção – e consumo – gera, ao mesmo tempo em que é perpetuada, uma concepção histórica de sujeito.
Em outras palavras, povos diferentes, de épocas e lugares distintos, vivenciaram relações interpessoais e de produção muito distantes das que vivemos hoje. Outras maneiras de relacionar-se com as pessoas do cotidiano, outras maneiras de se conceber e se colocar e conjugar a existência. Outras maneiras de espiritualidade! O “eu” e o “outro” dançam historicamente em ritmos diferentes – a música inevitavelmente será tocada por outra banda.
Tais concepções de sujeito não estão nítidas e conscientes no saber das massas. Pelo contrário, estão enraizadas no inconsciente coletivo das culturas, e só perduram por se sustentarem ideologicamente em estruturas como a religião.
A frase “A religião é o ópio do povo” não foi colocada primeiro por Karl Marx, como atribuem geralmente. A ideia foi colocada por um sujeito que se debruçou fortemente sobre a teologia: Hegel, um dos maiores cérebros que já habitaram a terra, cuja filosofia, era sobretudo, espiritualista.
As grandes religiões monoteístas, além de referencial na conduta moral e guia espiritual de seus devotos, são, sobretudo, grandes mecanismos de poder. Basta olhar o milênio inteiro de governança da instituição católica.
Toda essa cultura milenar ocidental deu origem a distorções comportamentais e danos emocionais. Essa ideia de negar o corpo, e negligenciar os afetos – que se originou na diáspora grega – teve seu apogeu de dominação e controle com o estabelecimento da Igreja no poder.
Nietzsche, um ateu maluco, fez como ninguém – desfilando na linha tênue entre genialidade e insensatez – a crítica dessa tradição niilista que visa negar o óbvio em afirmação do duvidoso. O insensato alemão desprezava a ideia da proposição/imposição de um mundo perfeito e transcendente, em detrimento do que nos é inerente: o sexo, a libido, as pulsões e os afetos. Tal repressão do desejo, sistematicamente introduzida na cultura, não gerou apenas distúrbios comportamentais. A partir dela, surge o trabalho de Sigmund Freud, pensador revolucionário que consolidou uma envolvente tradição de crítica à cultura: a Psicanálise.
Já no Renascimento, na ante-sala da era moderna, a pintura de Michelângelo já havia afirmado o homem “no esplendor de sua nudez” uma antítese para a tradição cristã, teocêntrica, que removera o homem da História. O Iluminismo cumpre o papel de emancipar um homem cativo, transformando a razão e o conhecimento científico em instrumento de resgate da tão sonhada liberdade. Prometia fazer do sujeito o único autor de sua presença no mundo. Tal movimento fez avançar o pensamento libertário. Seus principais pensadores tem importância fundamental em áreas essenciais até os dias de hoje, como a Economia, Direito, Sociologia etc.
A responsabilidade do sujeito sobre si mesmo desembarcou em duas correntes filosóficas ocidentais: a leitura existencialista, que considera o contexto social e histórico como formador do sujeito, ao mesmo tempo em que atribui a ele o poder e a responsabilidade fatal de fazer escolhas o tempo todo. A outra leitura é assumida pelos autores liberais, que também coloca a responsabilidade no sujeito de fazer escolhas e assim produzir seu próprio destino. Este modo de pensar e explicar o sujeito costuma deixar de lado o contexto social e histórico que literalmente constituem os sujeitos. Os liberais trabalham com uma concepção de sujeito atomizado. Com predicados inerentes a sua natureza. Um sujeito que não enxerga que suas necessidades não se originam nele mesmo, mas sobretudo na lógica de consumo do sistema econômico que eles mesmos sustentam ideologicamente. Esse estranho sujeito – presente em mim e em você – se tornou presa fácil para se tornar massa de manobra líquida, que busca satisfazer as várias demandas que a ideologia do consumo impõe sobre ele – demandas que muitas vezes são inalcançáveis – fazendo com que sua ideologia seja um ciclo vicioso e anestesiante de produzir, consumir e enriquecer. E nada para além desse horizonte.
Assim, formamos sujeitos sem a capacidade de treinar a empatia, enquanto ensinamos nossas crianças, desde cedo, nas escolas, a lógica da competição, em detrimento da cooperação.
Pessoas egocentradas que só se importam com determinado problema quando o imediatismo de seu ego está em jogo. O outro é avaliado no estreito critério da ética utilitária. Isso explica porque os atentados de Paris recentemente foram muito mais impressionantes e causadores de espanto do que a barbárie diária da fome e da doença que dizima populações em lugares como a África.
Paradoxalmente, a sociedade de consumo conseguiu exaurir a subjetividade das pessoas, impondo a elas que busquem sua identidade naquilo que consomem e exibem. E que elas lutem, com unhas e dentes e passeatas virtuais, pelo seu direito de fazer isso, ou seja, de defender até o fim seu direito de opressão sistemática. Toda essa engenharia, sugestivamente libertária, amanhece, pois, metafisicamente insustentável.
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