Nos últimos dias a violência contra as mulheres entrou no debate nos principais meios de comunicação do Brasil por envolver programas e artistas de um dos principais veículos de comunicação. Chama a atenção nesse debate o grau de dificuldade que os meios de comunicação e os envolvidos nos fatos apresentam ao definir ou reconhecer a violência contra a mulher.
Infelizmente, isso não é um fato isolado. Apenas ganha notoriedade a complexidade da violência contra as mulheres e revela o quão nossa sociedade tem dificuldade em admitir que certas atitudes e comportamentos encontram-se carregados de violência.
De fato, conceituar a violência não é tarefa muito fácil principalmente por ser ela, por vezes, uma forma própria de relação pessoal, política, social e cultural configurando-se nas interações sociais como um componente cultural naturalizado. Ou seja, trata-se de fenômeno extremamente complexo. Para entender a violência é preciso primeiramente reconhecer nas relações sociais ou no comportamento da sociedade os componentes que caracterizam o uso intencional da força física ou do poder.
Nas relações de poder, entretanto, não é preciso necessariamente o uso da força física contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade para se configurar a violência. Via de regra, as relações de poder são carregadas de violência simbólica, psicológica ou emocional, tão letais como o uso da força. Porém, não é simples identificar a complexidade da violência nas relações de poder que precisam ser analisadas a partir de determinado contexto, meio cultural e momento histórico de cada sociedade.
Quando se trata da violência contra a mulher, o fenômeno é ainda mais complexo porque envolve múltiplos fatores que não podem ser analisados de forma isolada correndo-se o risco de se relativizar atitudes e comportamentos de dominação implícita que escondem processos históricos de violência produzidos e reproduzidos em praticamente todas as sociedades. As relações de poder e dominação entre homens e mulheres são vinculadas à conjuntura política, econômica e cultural das sociedades que as produzem e as mantêm.
Para desconstruir e superar a violência e seus atenuantes, a sociedade precisa primeiramente reconhecer e admitir que é produtora e legitimadora da violência quando permite que um sujeito exerça o poder do abuso contra outro sujeito. No caso da violência contra a mulher, a sociedade cria mecanismos de relativização das relações de poder e dominação que fazem com que os homens não admitam e não reconheçam o abuso a ponto de ignorar mensagens e códigos linguísticos por parte da mulher que expressa de forma direta ou indireta as frases de efeito ‘não quero’, ‘não dá mais’, “só até aqui”.
No caso da violência contra mulher protagonizada no reality show Big Brother Brasil 2017, a pessoa abusada proferiu frases relativas às mencionadas anteriormente milhares de vezes enquanto seu abusador continuava com seu comportamento de forma incisiva chegando até mesmo às vias de fato, reveladas nos resultados dos exames de corpo de delito. Chama a atenção neste caso a omissão das pessoas próximas ao casal que conviveram por diversas semanas com o fato da violência sem manifestar intervenção. Chama mais atenção ainda o fato de pessoas ligadas ao campo do direito fazerem parte do contexto da violência não apresentarem nenhuma forma de intervenção.
A omissão, neste caso específico, pode revelar um recorte fiel da sociedade que não está preparada nem para identificar nem reconhecer a complexidade da violência contra a mulher, tolerando-a embaixo do mesmo teto vinte e quatro horas por dia no decorrer de semanas à fio chegando ao limite da intervenção externa, da Delegacia Especializada em Crimes contra a Mulher, para o rompimento do quadro de sujeição e abuso que se estabelecera em rede nacional.
Este e outros fatos recentes ilustram bem a complexidade da violência contra a mulher quando nem ela mesma consegue identificar o grau de violência a que está sendo submetida paulatinamente. Sobre este tema, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, ocorrida em 1995, em Beijing (China) estabelece alguns critérios para o conceito de violência contra a mulher em seus Artigos 112 e 113 que define: “a violência contra a mulher constitui obstáculo a que se alcance os objetivos de igualdade, desenvolvimento e paz; a violência contra a mulher viola, prejudica ou anula o desfrute por ela dos seus direitos humanos e liberdades fundamentais; inveterada incapacidade de proteger e promover esses direitos humanos e liberdades nos casos de violência contra a mulher é um problema que preocupa todos os Estados e exige solução; em todas as sociedades, com maior ou menor incidência, as mulheres e as meninas estão sujeitas a maus tratos de natureza física, sexual e psicológica, sem distinção quanto ao seu nível de renda, classe ou cultura”.
No Artigo seguinte ressalta que a expressão ‘violência contra a mulher’ “se refere a quaisquer atos de violência, inclusive ameaças, coerção ou outra privação arbitrária de liberdade, que tenham por base o gênero e que resultem ou possam resultar em dano ou sofrimento de natureza física, sexual, psicológica, e que se produzam na vida pública ou privada”.
Ainda sobre este tema, o Relatório de Direitos Humanos da Mulher da Human Rights Watch de 1996 apontou que a agressão às mulheres interage com fatores familiares, comunitários, culturais e outros fatores externos que “criam uma situação propícia à violência doméstica que é a maior causa de ferimentos femininos em todo o mundo, e principal causa de morte de mulheres entre 14 e 44 anos”.
Posteriormente, em análise similar, o Relatório do Banco Mundial de 2011 afirma que “um em cada cinco dias em que as mulheres faltam ao trabalho é motivado pela violência doméstica” e ainda, “o risco de uma mulher ser agredida em sua própria casa pelo pai de seus filhos, ex-marido ou atual companheiro é nove vezes maior que sofrer algum ataque violento na rua ou no local de trabalho”.
Estas breves análises contribuem para incrementar o necessário debate e o processo contínuo de rompimento das relações de poder e dominação que resultam em permanente violência contra as mulheres em nossa sociedade.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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