Considerada uma das maiores festas do planeta, o carnaval caracteriza-se por uma diversidade de ritmos e estilos que arrastam pequenos grupos ou multidões inteiras embaladas pelo samba, afoxé, maracatu, boi-bumbá, frevo, marchinhas, batucadas e outras performances nas ruas do Brasil. O carnaval acontece também em muitos outros lugares do mundo, mas, no Brasil, ganha proporções gigantescas.
Os dicionários definem o carnaval como “período anual de festas profanas, originadas na antiguidade e recuperadas pelo cristianismo na Idade Média, que começava no Dia de Reis (Epifania) e acabava na Quarta-Feira de Cinzas, às vésperas da Quaresma”. E ainda “festejos populares provenientes de ritos e costumes pagãos, caracterizavam-se pela liberdade de expressão e movimento”. A festa foi trazida para o Brasil no século XVII, através dos colonizadores com a reprodução das festas celebradas em algumas cidades europeias, especialmente da Itália e da França.
Com o passar do tempo, o Brasil foi ressignificando o carnaval atribuindo-lhe ritmos e ritos locais. É inegável que se tornou uma grande festa com alguns de seus ritmos como frevo, samba de roda e marchinhas, considerados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), como Patrimônio Imaterial da Humanidade.
Desde a antiguidade, uma das características do carnaval é a irreverência que se manifesta através das representações da festa com suas alegorias, máscaras e fantasias, bonecos gigantes em algumas regiões, com brincantes ou foliões, adornados com muito brilho, plumas e purpurinas, com chuvas de confetes e serpentinas coloridas, com maior ou menor intensidade a depender de cada região.
A irreverência sempre fez parte da festa. Mas, ao mesmo tempo, cobra da festa algo que está para além de si. Transforma a festa em manifestação de protesto, em palco político. Mesmo que para muitos a irreverência represente a banalização de temas sérios que não cabem a uma festa, para outros, pode representar a chance de tratar de forma irreverente, as temáticas que não são expostas nas rodas de conversas dos espaços convencionais por vezes sisudos.
Como em todos os outros anos, não faltou irreverência no Carnaval deste 2018. A marca de protesto e a crítica às questões políticas estiveram presentes em muitas manifestações festivas como nas representações dos bonecos gigantes de Olinda e Recife, nos milhares de blocos espalhados pelas cidades do Brasil e no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo. Trouxeram para as avenidas importantes críticas à política brasileira debatendo temas como o “golpe” e a meritocracia das instituições de governo, denunciaram as desigualdades sociais e os sofrimentos dos migrantes e refugiados que chegam ao Brasil em maiores proporções nos últimos anos.
Entretanto nenhuma manifestação crítica parece ter provocado tanto impacto quanto o desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti, no Rio de janeiro. A escola optou pela memória da escravidão como tema de protesto. A começar pela letra do samba enredo, de composição de Cláudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Aníbal e Jurandir, a temática da continuidade da escravidão foi amplamente denunciada por esta escola.
A primeira estrofe do samba enredo denuncia os moldes tradicionais da escravidão apontando-a como crime humanitário cometido contra os povos da África. A diáspora africana continua nas desigualdades sociais, políticas e econômicas que se originaram na escravidão. A letra diz o seguinte:
Irmão de olho claro ou da Guiné, qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado, o mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois, mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz.
Eu fui mandiga, cambinda, haussá, fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz, morri nos canaviais onde se plantava gente
Ê Calunga, ê! Ê Calunga! Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade, não tem ferro nem feitor.
Amparo do Rosário ao negro benedito, um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito, um rito, uma luta, um homem de cor
E assim quando a lei foi assinada, uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira, fui rezar na cachoeira contra bondade cruel
Meu Deus! Meu Deus! Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social
Não sou escravo de nenhum senhor, meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela, é sentinela da libertação.
A segunda estrofe é um grito de dor que denuncia a forma covarde com que os povos africanos foram conduzidos à escravidão. Reis e rainhas étnicos transformados em escravos, açoitados e sacrificados no trabalho, vítimas de uma estrutura de controle comercial da exploração do trabalho que deixou na história do Brasil uma cicatriz difícil de se apagar.
A terceira estrofe, canta a alegria da liberdade e questiona seus limites. A libertação não foi completa e a escravidão continua em suas novas faces. Mesmo assim, é preciso celebrar a vitória do povo da diáspora africana espalhado por todo o novo continente. Foi este povo escravizado que produziu tanta riqueza e dela não participou.
A última estrofe é um lamento de dor de um povo que continua apartado da riqueza que ajudou a construir. Por isso, a libertação ainda não chegou. A escravidão continua no “cativeiro social” que atinge milhares de pessoas privadas de direitos e de liberdade e que cantam juntos “meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão”?
Além da letra do samba enredo, a performance do desfile denunciou as estratégias políticas do atual governo do Brasil “desgovernado” que vem legitimando a continuidade da escravidão com as reformas trabalhistas e da previdência. O desfile também cobrou de uma parcela da sociedade seu compromisso com as transformações profundas na política nacional satirizando o controle da mídia sobre a classe que defendeu o golpe de estado e permanece calada, acuada, ao que o bloco performático definiu como “patos amarelados” conduzidos como marionetes.
Do ponto de vista sociológico, no entanto, as escolas permaneceram na parte mais superficial da atual conjuntura política nacional. Não aprofundaram temas mais centrais como o papel de instituições de governo para além da esfera política e econômica tais como as autarquias do Tribunal de Contas da União (TCU), que condenou as contas do governo Dilma e a desautorizou no campo político. Não tocaram na Controladoria-Geral da União (CGU), que vem fazendo vistas grossas aos esquemas de corrupção do atual governo. Não questionou o papel de parte do Ministério Público que vem atacando a política, tentando destruir sua legitimidade, criando “bodes expiatórios” e protegendo os grandes chefes dos esquemas de corrupção com status de legitimidade política. Nenhuma escola questionou o papel de uma parte importante do Judiciário que vem julgando e condenando lideranças políticas “por convicção” sem provas técnicas ou materiais, e parte do Supremo Tribunal Federal que vem atuando de maneira interventora no campo político desautorizando governos e medindo forças no campo do poder, agindo por “intuição” e vendendo informações sigilosas de investigações em andamento, libertando condenados que pagam fortunas pelo alvará de soltura.
Mas, esse debate não poderia mesmo ser aprofundado na festa de carnaval. Afinal, este não é seu papel. Ela, a festa já fez muito provocando essas reflexões, levantando esses temas de forma irreverente e divertida. Cabe à sociedade, no entanto, dar continuidade ao debate aprofundando mais e mais o assunto, abrangendo as esferas mais profundas do poder político do país e se posicionando para além, muito além do que a festa permite.
Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR); mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia, mestre em Gênero, Identidade e Cidadania (Universidad de Huelva - Espanha); Cientista Social, Licenciada em Sociologia (UFAM); pesquisadora do Grupo de Estudos Migratórios da Amazônia (UFAM); Pesquisadora do Grupo de Estudo Interdisciplinar sobre Fronteiras: Processos Sociais e Simbólicos (UFRR); Professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR); pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia (OBMIRO/UNIR). Assessora da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM/CNBB e da Cáritas Brasileira.
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