Saber nadar, perder peso rápido ou comer queijo sem engasgar. Atualmente, essas não são lá habilidades que façam alguém se gabar. Há alguns anos, porém, tais atos já foram encarados como sinais divinos e evidências de que alguém não havia cometido o crime de que foi acusado.
Hoje, quando alguém quer vencer alguma causa importante, basta ser poderoso o suficiente para contratar o advogado do Fluminense ou ter foro privilegiado.
Na Antiguidade, entretanto, quando ficava complicado saber quem era inocente ou culpado, os julgadores encaminhavam o processo para a mais alta “instância superior”. No caso, para os deuses. O nome dado para esse tipo de julgamento era de ordália (ou ordálio) e consistia na aplicação de experiências de riscos com elementos naturais como fogo, água ou ingestão de substâncias para legitimar uma decisão judicial.
Também conhecida como “Juízo de Deus”, a ideia da ordália era que a divindade iria intervir no julgamento humano para salvar o inocente ou condenar um culpado. No código de Hamurabi há algumas instruções de ordália, uma delas frisa: “Se alguém fizer uma acusação a outrem, e o acusado for ao rio e pular, se ele afundar, seu acusador deverá tomar posse da casa do culpado, e se ele escapar sem ferimentos, o acusado não será culpado, e então aquele que fez a acusação deverá ser condenado à morte, enquanto que aquele que pulou no rio deve tomar posse da casa que pertencia a seu acusador”.
Outros povos da Suméria fizeram adaptações a essa ordália, tornando mais difícil a prova de inocência. No caso, o acusado tinha que boiar no rio sagrado após ser jogado com as mãos e pés amarrados.
Na Bíblia, o livro Números (05:11-31), do Antigo Testamento, também registra uma ordália específica para tirar a teima de maridos ciumentos, o ritual Sotah. Essa ordália ocorria quando uma mulher suspeita de adultério deveria consumir uma água de sabor muito amargo e baseado nos efeitos da ingestão se constataria a culpa ou inocência da acusada.
Lutadores que precisam “bater o peso” e chegam até a perder vários quilos para participar de competições, não estranhariam uma ordália que foi muito popular na Índia. Nela, o acusado era colocado em um prato da balança, no outro prato era colocado o equivalente do seu peso em tijolos e em sacos de arreia. Feita a pesagem, era marcada na viga horizontal da balança a posição de equilíbrio. Em seguida, o réu era retirado do prato da balança e ouvia a leitura das acusações e orações. Se na segunda pesagem ele pesasse menos que na primeira, ele era considerado inocente. Se pesasse o mesmo peso de antes ou mais, então era culpado.
Na Idade Média, uma das ordálias mais populares era a de combate ou de duelo, usada em casos que não havia testemunhas ou confissões para disputas relacionadas a terras, dinheiro, honra e crimes graves, como homicídio, perjúrio, traição e deserção. O vencedor da luta era considerado inocente e o derrotado, o culpado.
Outra ordália bastante famosa nessa época era a ordália pela cruz: o acusador e o acusado tinham que manter o braço levantado, em forma de cruz, pelo maior tempo possível. Aquele que desistisse era considerado culpado. Por essa modalidade, a abadessa de Bischoffsheim (depois, santa Lioba) defendeu a pureza de sua freiras, quando a reputação do seu convento ficou abalada, após a descoberta de uma criança recém-nascida afogada em um lago da vizinhança.
Outras ordálias curiosas envolviam a capacidade de ingestão, como: mastigar, sem ferir a gengiva, uma enorme quantidade de grãos de arroz com casca; ou, ainda, não se engasgar ao comer um pedaço de pão de cevada ou de queijo, com cerca de uma onça (28 gramas) de peso, enquanto orações e invocações eram pronunciadas.
As ordálias mais corriqueiras envolviam o fogo, por ser considerado um poderoso elemento purificador. Uma das administrações era fazer o réu caminhar sobre uma dúzia de arados ardentes ou andar segurando uma peça de ferro ardente por determinada distância. Três dias depois as ataduras eram retiradas e a decisão era tomada de acordo com as condições dos pés ou das mãos: nenhum ferimento era sinal de inocência.
Havia ainda o julgamento da verdade pelo fogo em que o acusado era obrigado a entrar ou botar as mãos nas chamas. Vem dessa ordália, a expressão “botar a mão no fogo”.
Numerosas denúncias de subornos e manipulações fizeram papas proibirem as ordálias. Uma das queixas era contra alguns padres que sempre escolhiam para as mulheres bonitas a ordália da água fria. Nessa prova, era inocente quem afundasse dentro de um caldeirão com água fria. A reclamação era que os cônegos faziam isso só para terem a desculpa de despi-las.
Não se usa mais a ordália como prova da revelação da justiça, porém, ainda hoje somos influenciados por este conceito ancestral quando aceitamos, por exemplo, decisões por sorteio ou por unanimidade.
E ainda não é raro quem considere como um sinal sobrenatural o resultado de eleições e o vencedor de disputas esportivas. Será mesmo o próximo ganhador da Copa do Mundo uma escolha divina? Você bota a mão no fogo?
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