Finalizando o mês de março, dedicado às mulheres que foram e continuarão indo às ruas na luta constante por seus direitos e de toda sociedade, apresentamos algumas reflexões em torno da temática do ‘lugar’ das mulheres nas dinâmicas migratórias na Amazônia, por ser este um tema pertinente em nossa região. Recentemente, juntamente com o Professor Doutor João Carlos Jarochinski Silva, da Universidade Federal de Roraima, escrevemos o artigo ‘Paradoxos das migrações nas fronteiras da Amazônia Contemporânea’ apresentado e publicado no Grupo de Trabalho ‘Migrações internacionais: legislações, estados e atores sociais’ do 39º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais – ANPOCS.
No referido artigo debatemos que uma das características marcantes da chamada Globalização Contemporânea são os fluxos migratórios. O número de pessoas circulando pelo mundo é bastante expressivo. Os dados mais confiáveis trabalham com quantitativos que variam entre 3% a 3,5% da população mundial como migrantes internacionais. A região amazônica também faz parte desse contexto. Baseados em estudos realizados em diferentes grupos de pesquisas e nos dados do senso demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, divulgados em 2013 e 2016, chegamos a uma estimativa aproximada da migração na Amazônia brasileira. Os dados revelam uma intensa mobilidade intrarregional chegando à casa de 16% da população e inter-regional somando uma média de 17% da população. Ainda de acordo com nossas estimativas, a circulação ou permanência de imigrantes corresponde a pouco mais de 2% da população total da região. Entretanto, em se tratando de fronteiras transnacionais, há que se considerar também a intensa mobilidade de brasileiros nos países vizinhos.
A circulação de migrantes internacionais, seja de brasileiros que se dirigem aos países vizinhos, seja o de pessoas vindas de outros países para o Brasil, exige uma atenção maior por parte da gestão de políticas migratórias. Entretanto, não é o que se tem observado, pois se verifica um maior investimento no controle das fronteiras, em detrimento de políticas de atenção aos migrantes. Fato importante neste contexto migratório transfronteiriço que chama a nossa atenção é que 53% destes migrantes são mulheres deslocadas em busca de trabalho, de estudos, de melhores condições de vida e, de modo especial, para escapar da violência doméstica e do feminicídio anunciado nas constantes ameaças de morte proferidas por seus maridos, companheiros, namorados, patrões, autoridades locais e tantos outros.
Em diversos estudos de casos realizados com mulheres migrantes transfronteiriças na Amazônia, identificamos os motivos dos deslocamentos, como nos fragmentos da seguinte narrativa: “Eu nasci na selva peruana, na região de Iquitos. Fui mãe aos 11 anos. Aos 16 já tinha 4 filhos e foi quando meu marido que era um garimpeiro brasileiro me levou da aldeia para a cidade de Santa Rosa na fronteira com Brasil. Lá ele nos abandonou por causa de outra mulher e sumiu no mundo atrás de garimpos. Fui morar com minha madrinha em troca de casa e comida. O padrinho começou a me molestar. Sofri muita violência e abuso sexual da parte dele. Até que um dia resolvi vir para Manaus para fugir daquilo. Peguei as crianças e fui para o porto. O dono do barco recreio disse que eu podia embarcar trabalhando de cozinheira para pagar as passagens. Foi assim que vim para Manaus em 2001”.
Esta narrativa ilustra de forma bastante objetiva o ciclo de violência sofrido por esta e por centenas, quiçá, milhares de mulheres, deslocadas nas fronteiras da Amazônia. Outra situação que vem provocando inúmeros deslocamentos forçados de mulheres são os conflitos socioambientais e a criminalização das lideranças dos movimentos sociais. Muitas mulheres comprometidas com as lutas do seu povo são obrigadas a migrar para escapar das tensões, perseguições políticas e ameaças de morte. Conforme a narrativa seguinte, o deslocamento de muitas mulheres configura-se eminentemente compulsório, ou seja, sem prévio planejamento e nenhum projeto migratório: “Depois da confusão com os madeireiros, entrando na nossa reserva no sul de Lábrea, pensei cá comigo que era hora de ir embora. Meu marido falou assim: ‘mulher pega os curumins e vai para Manaus. Fica lá nos parentes. Quando a situação melhorar você volta’. Aí eu vim pra Humaitá e lá pequei o recreio para Manaus. Uma parente estava me esperando à noite no porto. Me assustei com o tamanho da cidade e com tantas luzes. Entramos no ônibus do ‘Jesus me deu’ e foi outra viagem até chegar aqui. Ainda estou muito assustada e com medo de me matarem”.
De modo geral os conflitos socioambientais envolvem as questões agrárias, a luta pela terra, a destruição da floresta, a exploração comercial dos recursos extrativistas, principalmente a castanha, o peixe e o açaí. Mas, também tem a ver com as resistências de comunidades locais afetadas pela contaminação dos rios e mananciais. Esses fatos aparecem nas memórias da ex-vereadora de uma cidade da região guayano-amazônica ao sul da bacia do Orinoco na Venezuela: “me elegeram vereadora para enfrentar as mineradoras ilegais que atuam na bacia do Orinoco na Gran Sabana. Eles contaminam nossas águas, matam nossos peixes e nos expulsam de nossas comunidades. Foi muita luta e por causa disso tentaram me matar três vezes. Não tive outra saída a não ser vir embora para Boa Vista e recomeçar a vida aqui no Brasil”.
Estas narrativas indicam que uma característica comum em boa parte do quantitativo das migrações nas fronteiras da Amazônia, principalmente quando envolve mulheres, é o atentado aos direitos humanos. Nesta perspectiva, ressaltamos que os direitos humanos não são uma questão de escolha, mas uma obrigação legal decorrente de tratados internacionais, que obrigam todos os governos que lhes ratificaram. Os direitos humanos deveriam, portanto, ser uma dimensão integral do desenho, implementação, monitoramento e avaliação das políticas e programas migratórios. Além disso, o respeito dos direitos humanos dos migrantes é essencial para maximizar os benefícios potenciais e as contribuições positivas dos migrantes para o desenvolvimento econômico e social em ambos os países de origem e de recepção. Tudo isso representa grandes desafios às políticas migratórias nas regiões fronteiriças principalmente aquelas voltadas para as mulheres migrantes em suas peculiaridades e desafios permanentes.
Neste intenso contexto migratório, mais que em outras realidades, as sociedades transfronteiriças, precisam estar constantemente preparadas para receber e integrar as mulheres migrantes. Como bem disseram os poetas populares Valdomiro de Oliveira, Marcos Gianelli e Francisco Esvael: “Elas estão chegando, pelas portas e janelas, avenidas e vielas. Elas estão chegando. Chegando como um vento forte, com vida e norte. Chegando para questionar. Chegando para mudar. Chegando sempre com doçura, para juntar forças, para encantar, para alegrar. Chegando para sarar as juntas, para juntar as forças, para construir, para prosseguir. Chegando para questionar, para mudar, encantar e alegrar.
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Parabéns minha amiga Dra. Márcia Oliveira por mais um excelente texto resultado de suas pesquisas. Atualmente você é uma das grandes referências sobre a questão das migrações de mulheres na Amazônia.