Muito se discute sobre o que vem a ser uma sociedade segura. Estudiosos, pensadores, em distintas correntes de reflexão, procuraram tratar o tema. Mas, afinal, o que é uma sociedade segura?
Para Platão, somente uma sociedade regida pelo princípio permanente da justiça, governada por homens virtuosos, capazes de conhecer o bem e o belo, poderia ser segura. Na concepção desse filósofo, a função dos governantes seria assegurar que o povo levasse uma vida digna. A noção de vida digna seria, em síntese, a vivência de valores éticos, a busca do conhecimento e o desenvolvimento de habilidades que contribuíssem para o bem de todos, ou seja, tudo aquilo que contribuísse para que o povo pudesse viver bem. A vida digna, em Platão, não é uma mera questão de bem estar material, de exercício de poder nem de usufruto de prazeres sensuais e sensoriais. A vida digna, condição para uma sociedade segura, constitui na visão do pensador clássico a capacidade do povo, dos governantes e do Estado viverem segundo a justiça, a bondade, a beleza e a sabedoria. Ao Estado e seus governantes competiria, por tarefa maior, serem as referências dessa vivência de virtudes fundamentais (arquétipos ou formas ideais, reveladoras do mundo real, do qual somente percebíamos as sombras, segundo Platão), capazes de orientar e guiar os cidadãos do povo na direção de uma vida digna, ou seja, de uma sociedade segura.
Mas Platão não era platônico. Estava convicto de que, fosse qual fosse o regime político, os governantes tenderiam a agir segundo suas ambições e interesses de modo a pô-los acima dos interesses do Estado e do bem-estar dos cidadãos do povo. A causa disso, segundo ele, seria a ignorância acerca das virtudes fundamentais e a falta de vivência desses valores essenciais à vida digna. Essa ignorância conduziria os gestores públicos a governarem pelas razões erradas e o povo a buscar as coisas erradas, mergulhando num espiral de decadência, tendência que já vinha prevalecendo na antiga Grécia, da qual teria sido reflexo a condenação e a morte de seu mestre, Sócrates. Por isso, após regressar de longas viagens de pesquisa filosófica, Platão atuou até o fim da vida na “Academia”, uma escola de filosofia que fundara voltada para ensinar os valores, os conhecimentos e as habilidades necessárias para se viver uma vida digna, que primasse por uma educação centrada na formação ética e na busca da sabedoria. Com isso, o grande filósofo apontava, desde a antiguidade clássica, o caminho à convivência social digna e segura.
Aristóteles, embora discordando de Platão quanto ao melhor regime político e em muitas questões de conhecimento, também postulou que o propósito da existência humana seria viver uma vida digna e feliz, segundo a razão, isto é, a busca por justiça, bondade e beleza. Para o autor de “Ética a Nicômaco”, os verdadeiros prazeres do homem são as ações e as atitudes conforme a virtude. Nesse sentido, o objetivo da polis (cidade-estado grega) seria formar os cidadãos para conviver numa sociedade de acordo com as virtudes. Dessa forma, seria possível às pessoas viverem juntas, numa sociedade capaz de promover a liberdade com justiça, inclusive de proteger a propriedade dos cidadãos. Não bastaria à polis, segundo Aristóteles, apenas que as pessoas vivessem juntas (isso já ocorria entre os animais e, por natureza, entre os homens, que seria um ser social), mas que pudessem viver bem, levando uma boa vida, uma vida com dignidade. Leia-se: uma sociedade justa, livre, solidária e segura. Por isso, de acordo com o mestre do “Liceu”, escola filosófica dele, o melhor governo seria “aquele em que cada um melhor encontra o que necessita para ser feliz.” E todos necessitam desses valores essenciais que conduzem à vida digna.
Santo Agostinho, além de confirmar a tradição de um Estado submetido ao estado de direito, compartilha do entendimento, influenciado pelos mestres clássicos, de que o Estado deve oportunizar ao povo que leve uma boa vida, uma vida justa, uma vida digna, uma vida segura. Questionava o bispo de Hipona, que “não havendo justiça, o que são os governos senão um bando de ladrões?” Sem a existência de justiça, qualquer associação de homens unidos apenas pela lei não teria como progredir.
De modo semelhante, também para São Tomás de Aquino, o objetivo fundamental do Estado era promover uma vida digna e virtuosa. Isso estaria em plena harmonia com a lei divina, pois evitaria a injustiça e a opressão. A justiça pra Tomás de Aquino era a principal virtude política, elemento essencial à governança, e o que permitiria distinguir entre um bom e um mau governo. De maneira que somente por meio da justiça se poderia alcançar a paz e a vida com dignidade.
Maquiavel interessou-se mais em dizer como, na sua visão, a luta política funcionava pragmaticamente em seu tempo, com vistas a orientar o governo em ação, do que em imaginar uma sociedade do “dever ser”. Contudo, mesmo julgando que o propósito maior do Estado não fosse conduzir seus cidadãos em direção à moralidade necessária à vida digna, considerava que o ente estatal teria de garantir a segurança e a ordem estatal. E, como se trata do estilo à Maquiavel, não haveria problema algum em recorrer ao pior dos recursos. Afinal, para ele e seus adeptos, “os fins justificam os meios”.
Rousseau, diferentemente dos gregos que viam a política como algo cíclico – sujeita às próprias leis, que estavam ancoradas na imutabilidade da natureza humana –, concebia a sociedade como algo mutável, capaz de ser transformada para uma condição melhor por meio da ação política. Para o iluminista francês autor do “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, um novo contrato social para promover a liberdade com segurança poderia ser escrito e acordado, inclusive sob o resguardo das leis. Dependeria apenas das instituições políticas moldar essa nova sociedade.
O chanceler inglês Thomas Moore só encontrou segurança na sua imaginada ilha “Utopia” (1516). Marx não viu outra saída senão procurar destruir o capitalismo e arriscar numa ditadura do proletariado que prometia o socialismo, cujos efeitos já sabemos no que resultou e como essa “revolução” acabou. A sociedade ficou sob a insegurança e o medo de ditaduras de esquerda por toda parte. Nada mais distante da ideia de vida digna e segura.
No fim do século XX, o historiador e filósofo estadunidense Francis Fukuyama proclamou que a fórmula da economia de mercado (capitalismo) com liberdade política marcou do fim da história, no sentido de uma vitória definitiva dos países de democracia liberal sobre o socialismo/comunismo no padrão soviético. Isso possibilitou a ascensão de sociedades mais seguras? Há inúmeros indicativos que não. Pelo contrário, mesmo sem considerar a bárbara globalização do terrorismo, as guerras étnicas e os conflitos bélicos regionalizados pelo mundo, o drama da insegurança pública explodiu em toda parte, agora muito mais integrado às questões sociais e vinculado a organizações criminosas. O modelo repressivo poder-polícia-presídio ganhou força como resposta imediata dos governos sem que isso tenha resultado efetivamente em sociedades mais seguras.
Em consonância com sua ideia de “liquidez” (modernidade líquida, vigilância líquida), o sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirmou que vivemos na era do “fim do futuro”. Para ele, está em curso um processo de decadência política, crise de representatividade e de perda de referências culturais e morais que nos faz perceber a sociedade sem futuro, pois não há mais uma visão de futuro que guie o presente. Vivemos os dias de hoje por meio de atalhos, iludidos com as “maravilhas” da tecnologia da informação, mas sem reais perspectivas de futuro num contexto global de banalização da violência e da decadência civilizatória. Para Bauman, apenas a indignação dos jovens que vivem o mundo real poderá mudar a rota contemporânea da humanidade, no sentido de consertar o estrago que os mais velhos legaram a eles. Enquanto isso, apesar do ilusório refúgio no mundo virtual, não é outro o cenário que não o do predomínio da globalização da insegurança e da violência.
No Brasil, a Constituição Federal, em seu art. 144, reconhece a segurança pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, mas só trata dos órgãos de combate à criminalidade. Será que reprimir o crime é o suficiente para promover uma sociedade segura? Ano a ano, realizam-se mais prisões, constroem-se mais presídios, contratam-se mais policiais, gastam-se mais bilhões com programas, equipamentos, tecnologia e logística da atividade policial. Melhorou a segurança pública? Haverá alguma alternativa a essa geração excluída de pobres, jovens e mal formados que não se reduza ao modelo poder-polícia-presídio? A aplicação do art. 144/CF, desconsiderando os artigos 5° e 6° da mesma carta política, desvia a segurança pública de sua principal finalidade: promover a vida digna.
De fato, são outros os indicadores de uma sociedade segura. Mais escolas de qualidade, desde a primeira infância, ao invés de prisões e presídios. Mais oportunidades de trabalho lícito e digno, formação profissional e saneamento urbano ao invés de bares, ociosidade promíscua e bocas de fumo. Mais programas sociais de fomento à cidadania e à cultura da solidariedade para o desenvolvimento e à paz social ao invés da competição, do individualismo e do abandono material e moral dos mais vulneráveis socialmente. Mais creches, ocupações pedagógicas, esportes que eduquem para a cooperação e benefício de todos, programas de emprego e de renda ao invés de distanciamento da assistência social e pedagógica, dentre outras formas de violências sociais. Os direitos fundamentais da pessoa humana precisam ser efetivamente assegurados desde a concepção.
Em que pese estarmos no séc. XXI, a busca pela realização de um projeto de sociedade segura, que promova a vida digna, continua sendo uma unanimidade nas aspirações de diversas nações e Estados, nos cinco continentes, pois na realidade social e institucional ainda transbordam os eventos que reproduzem a velha cultura de injustiça, de violência e de omissão.
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