Num país tropical…
Embora seja algo extenuante assistir o tempo todo aos desdobramentos das denúncias de corrupção e às sucessivas crises políticas e institucionais, é necessário que se continue a mostrar os esquemas operados, inclusive para sanear o país e desmistificar aqueles que se diziam combatentes contra os desvios e ilicitudes. As torrentes de lama não cessam e são maiores do que aquelas que exterminaram a cidade de Mariana, devastaram o Rio Doce, afetando distritos e cidades ao longo de seu leito. A exposição de tantas outras gravações e delações, envolvendo ministros, pessoas de partidos ligados ao atual governo e o próprio presidente, revela o que já se suspeitava – a conversão do Estado brasileiro numa republiqueta do crime.
STF
O crime institucionalizado nos comandos e cúpulas dos poderes estatais recebeu uma chancela a mais – a do STF, que reviu e se desincumbiu de exercer um papel mais relevante como Corte política suprema nesse momento tão relevante e crítico do país. Claro que a decisão da Corte confirma o que está expressamente escrito na Constituição – lembremos que a Carta foi elaborada por quem seria beneficiado com esses esquemas de captação financeira via eleições, tráfico de influência e contratos administrativos. O tratamento do caso do senador Aécio Neves (PSDB), abundantemente flagrado em escutas, gravações, depoimentos e outros meios de prova cometendo graves delitos, é paradigmático e escandalosamente vergonhoso. Será que o STF não poderia ter decidido diferente, enquanto corte política, frente a um contexto desolador? Será que o Supremo Tribunal Federal resume-se a isso, carimbar a lei escrita, mesmo quando ela opera contra o país e a sociedade brasileira? Seria a mera aplicação da lei escrita, nesse contexto, sinônimo de justiça? A que serve uma Corte suprema diante de um cenário político e institucional tão devastador à sociedade?
Na realidade, o STF poderia sim continuar adotando a posição que vinha mantendo, como o fez no caso de Eduardo Cunha (deputado pelo PMDB e presidente da câmara), de Delcídio do Amaral (senador pelo PT) e outros, no entanto, optou por recuar e lançar o país nas mãos da delinquência empoderada em cargos eletivos no Estado. Atuou na direção inversa do espírito saneador da Lei da Ficha Limpa, que semana antes o próprio STF fez questão de estender os efeitos para condenações anteriores a 2010. Poderia sim ter alegado mais razões substantivas de justiça, diante dos eventos de grave corrupção envolvendo políticos-empresas-instituições, do que razões técnicas e formais. É o exemplo do Estado formalmente técnico contra seu próprio povo. Com o mesmo sentido tecnocrático, governos nazifascistas justificaram aberrações, tudo disposto em suas leis e ordenações. A técnica e a ciência nazista continuam a justificar os mais horrendos absurdos políticos no Brasil. Esse país que se diz legalmente democrático, mas que na prática não rompe com vícios que o reduzem a uma republiqueta comandada pelo crime organizado, institucionalizado e naturalizado.
A farsa
Apesar de considerável parcela da sociedade brasileira ter ido às ruas para apoiar o impeachment e combater a corrupção, na realidade, tais manifestações acabaram sendo apropriadas para ter o efeito contrário do pretendido quanto a este último propósito. Cada vez mais, o afastamento da ex-presidente tem se revelado uma manobra criminosa, sobretudo por parte daqueles dedicados a fazer cessar o efetivo combate à corrupção institucionalizada. O uso do instituto legal do impeachment para o que se tem destinado traduziu-se em mais uma hedionda farsa política.
Tudo não passou de mais um ardiloso joguete “dos profissionais da velha política”, acostumados a surfar nas ondas das manifestações de rua para tentar tirar algum proveito junto a eleitores, mas ao final retomar os viciados “jogos” de poder e de manipulação dos apelos das multidões, em favor de interesses pessoais, corporativos e nada republicanos. A velha logospirataria política que degenera tudo que alcança. Nessa viciada dramaturgia, o impeachment limitou-se a mais uma encenação ao pior estilo “tomada de poder a qualquer custo”. Está nítido agora que todos os esforços visam desmontar o que vinha sendo feito no sentido de combater a corrupção sistêmica institucionalizada.
A contrarreforma
Se fosse diferente, em face dos graves cenários da crise política e econômica do país, haveria alguma iniciativa no sentido de se proceder a uma consequente reforma política. Um projeto de reforma política minimamente responsável e capaz de retomar o aprimoramento dos critérios para representação popular, a limitação ou o fim da reeleição no executivo e no legislativo, a revisão dos poderes, a erradicação da viciada lógica do presidencialismo de coalização, a reforma partidária, a possibilidade do voto distrital misto, a eliminação do predomínio da influência financeira ou abuso do poder econômico nos pleitos e processos eleitorais, a obrigatoriedade do voto, dentre outras questões essenciais para repassar o país a limpo. Ao invés disso, foram ao que interessa exclusivamente às viciadas hienas: recursos públicos para um fundo partidário bilionário. Uma indecorosa, e perversa, contrarreforma! Não há previsão para se discutir e implementar os urgentes “reparos” no sistema político, partidário e de representação no país.
Quem paga?
Para piorar, com a retomada do centro do poder estatal pelas velhas quadrilhas, o ônus desse carcomido sistema será pago por quem? Quem afinal levará a culpa e arcará com os prejuízos causados pela corrupção e com os privilégios intocáveis das viciadas cortes desse sistema estúpido, desumano e delinquente? Sim, os de sempre – o Terceiro Estado: os aposentados vagabundos e trabalhadores de baixa renda, os direitos sociais, os direitos ambientais e as regiões tuteladas contra o interesse logospirata, como a Amazônia. E, no caso da Zona Franca de Manaus (ZFM), serão preservadas suas vantagens comparativas para combater a desigualdade social e regional? A resposta já foi dada e a ZFM começou a ser desmontada muito mais rapidamente do que se supunha, a partir da concessão de benefícios fiscais que antes lhe eram exclusivos para regiões como o interior de São Paulo, em mais um flagrante de recrudescimento do concentracionismo e de interesses antifederativos.
Memória curta
Mas o que se poderia esperar dessa gente alavancada a todo custo ao comando do governo federal? Difícil responder. As pessoas não sabem nem lembram com quem estão realmente lidando. Blindado em mandatos, há escravagistas, “coronéis de barranco”, concentracionistas selvagens, neofascistas de plantão, torturadores e outros senhores do crime, da injustiça e do totalitarismo apenas aguardando alguma oportunidade. Há vários indivíduos notoriamente conhecidos por posturas de apoio a atitudes preconceituosas, racistas, contra a redução das desigualdades regionais e sociais, e outros que ainda fazem apologia ao exercício da violência e da força arbitrária. Existe a ala representante da indústria das armas (bancada da bala), que quer tirar do Estado e impor ao cidadão comum o dever de combater o crime com a própria arma, o que chega a ser irresponsavelmente ridículo.
Embora disponha do maior arsenal, a facilidade de acesso interno às armas torna os EUA o país mais vulnerável a atentados, como o de Las Vegas, dentre outros, em seu próprio território. As consequências da falta de controle sobre o comércio de armas e de munições são extremamente graves e injustificáveis.
Estão de prontidão ainda aqueles veículos de comunicação de massa e das redes de imprensa que sonham em voltar a ter a acesso a robustos “aportes de investimento” oriundos do poder público. O que pretender com tais bandos disfarçados de lobistas? Não se pode sequer prever o fundo do poço. O que era ruim ficou muito pior. E, se o atual presidente cair, outro perigoso elemento, presidente da Câmara, pode ascender. A situação é muito pior que na época do Collor, que ainda tinha um Itamar. Agora, nem isso.
E não adianta apenas trocar de “piloto” enquanto o “barco” (sistema representativo e eleitoral) estiver furado. Trocar de nomes e de comandos só resolverá quando o “barco” for reformado e receber os devidos reparos, do contrário, mesmo que mudem os “práticos”, a embarcação (país) continuará a fundar. Os poucos representantes decentes não conseguem trabalhar nem fazer coisa alguma de relevante nesse velho e viciado sistema, sendo isolados e sujeitados à segregação e ao ostracismo.
Os profissionais da republiqueta
Se antes havia “amadores” que não fizeram a pilhagem direito e “permitiram” que a falcatrua toda viesse à tona, agora os “profissionais” entraram em campo, aqueles que sabem apagar os rastros e as pistas dos delitos. E quando são “pegos” ou flagranteados, ainda que com fartura de vídeos, imagens, depoimentos e delações, resta-lhes a complacência de uma “generosa” suprema corte, de uma supremacia seletiva, sempre disposta a ajudar a alguns desses “pobre culpados” empoderados em mandatos estatais. Sim, estes senhores realmente sabem fazer “política”.
Os entes estatais brasileiros dispõem abundantemente de corruptos dispostos praticar a pior espécie de corrupção – aquela que não pode ser vista, aquela que nunca deveria aparecer e, logo, aquela que não poderia ser combatida. Felizmente para a sociedade brasileira nem sempre as coisas acontecem como eles planejaram, e acabam transbordando, todavia, os corruptos brasileiros tem na própria legalidade a segurança da impunidade e da cumplicidade que os trata como autoridades. Os vergonhosos acordões estão agora às claras, de um extremo ao outro. Assédios, cooptações, inclusive via aprovação de emendas e outros “jogos” para desintegrar o processo de depuração institucional iniciado com a Operação “Lava-jato”, estão em curso.
A sociedade se iludiu com os efeitos que o impeachment poderia gerar na mediação política. Na prática, começa a perceber que apenas trocou o ruim pelo péssimo com o agravante de ter dado “um tiro no pé” no que diz respeito ao efetivo combate à corrupção e à proteção de direitos sociais e ambientais, antes fora do risco de serem depreciados e precarizados. Os velhos “profissa” voltaram à cena.
Reação
Qual tem sido a reação da sociedade diante desse contexto? Como reagir de modo favorável à sociedade e à democracia brasileira? A princípio, a primeira reação a toda essa viciada jogatina não tem sido favorável ao país: é a ressaca da desilusão que toma forma na apatia e na inércia política da população, dos vários segmentos da sociedade civil e de seus movimentos. Outra forma de reação contra a própria pátria, frente a esse terrível contexto, trata-se da retomada de velhas ideias extremas e antigos movimentos separatistas. Mas não adianta sequer devolver o Brasil a Portugal, este já tem problemas demais por lá. Outra forma de reação é o cinismo: a aceitação de discursos que tentam impor ao povo brasileiro a culpa pelos crimes dos representantes eleitos, como se os cidadãos do país inteiro elegessem políticos para serem saqueados, assaltados, vitimados pela pirataria dos bens, dos recursos e das instituições publicas. Mesmo que certos eleitores pratiquem de algum modo desvios, em regra, ninguém vota num candidato para que este pratique a logospirataria, o saque e o assalto ao que é publico. Na realidade, todos os representantes eleitos juram que irão cumprir a Constituição Federal e vivenciar o espírito público, pondo os interesses coletivos e da nação acima dos particulares e individuais. A questão é que o modelo está montado de tal forma que não se consegue fazer qualquer coisa sem que se depare com tamanhas aberrações, esquemas, desvios e antinomias. Outra forma de expressão desse cinismo é tentar confundir a responsabilidade ética e jurídica do cidadão comum com a do eleito para mandato em cargo público. Estéreis são ainda as diversas formas de reação pela via da violência, seja física seja simbólica. A reação violenta reduz-se à mera brutalidade, ao dano ao patrimônio público e privado, à violação à integridade física e psíquica das pessoas físicas. Todas essas são formas de reação que não contribuem para repassar o país a limpo e oportunizar a ele uma nova perspectiva, uma nova rota.
Um país e seus dilemas
O Brasil é um país continental e de setores produtivos consideráveis, como o agronegócio, que reúne uma multiplicidade de recursos naturais e de biodiversidade, além de dispor de fontes de energia limpa e renovável. Um país muito bem servido pela natureza, cujo potencial ainda não se reverteu adequadamente em favor do povo brasileiro, mas serve para alimentar esquemas e redes sistêmicas de corrupção institucionalizada, a partir de poderes da republiqueta, pela logospirataria.
A classe média segue exaustivamente pressionada com tantos tributos e quase nenhum retorno em termos de serviços públicos de qualidade. A grande maioria dos cidadãos do povo é trabalhadora, contudo, não obtém retorno digno do trabalho que produz e da riqueza que gera ao país e suas corporações. Não há quem duvide que o Brasil seja um país rico em recursos naturais, recursos da biodiversidade e de um grande potencial biotecnológico, porém investe tão insuficientemente em educação, em pesquisa básica e de ponta, e concentra quase toda a renda nas mãos de tão poucos e da corrupção sistêmica que, ao final de todo o processo social, só distribui a pobreza e obstrui o desenvolvimento. Com isso não consegue prevenir nem combater eficazmente certas mazelas humanas e sociais, as quais ampliam os problemas em quantidade e gravidade na área de saúde e de insegurança pública, tais como as doenças mentais, a depressão, o tráfico de drogas, as organizações criminosas, crimes bárbaros de contra a pessoa (homicídios e execuções), contra a dignidade sexual, crimes violentos contra o patrimônio (latrocínios e graves lesões corporais), crimes contra a família, crimes contra a administração pública, gerando a consequente explosão da violência, da criminalidade, da população carcerária e de um tecido social adoecido.
Em 2014, foram mais de 60 mil homicídios no ano (60.474), em 2015, mais de 59 mil, e em 2016 a média se mantém em torno dos 60 mil assassinatos por ano no país, segundo o Atlas da violência 2017. Esse ano, dia primeiro de janeiro de 2017, começou com a chacina de 56 internos na penitenciária masculina Anísio Jobim, em Manaus. Dias depois mais quatro mortos na cadeia pública Raimundo Vidal Pessoa. Duas semanas depois do massacre em Manaus-AM, outros 26 internos foram mortos no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. O Brasil é portador do trágico título de “campeão” em homicídios no mundo. Assim sintetiza o Atlas da violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP):
“a nossa tragédia diária nos últimos anos atingiu
contornos inimagináveis: apenas em três semanas são assassinadas no
Brasil mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques
terroristas no mundo2 nos cinco primeiros meses de 2017, que
envolveram 498 atentados, resultando em 3.314 vítimas fatais.” (Atlas da violência/Ipea-FBSP, 2017, p. 4-5)
A gestão estatal, os poderes públicos e as instituições de mediação política têm sido prodigamente onerosos e ineficazes quanto à promoção da qualidade de vida e da oferta de serviços públicos de razoável padrão aos nacionais. Os governos produzem vultosos gastos sem retorno social, desperdiçam e desviam recursos públicos enquanto os problemas reais da população se agravam na saúde, na segurança, na assistência social, na infraestrutura e outras áreas essenciais. Saqueiam-se os recursos gerados pela sociedade brasileira e se esgotam as perspectivas de desenvolvimento do país.
Logospirataria política
Os processos institucionalizados de corrupção se generalizaram, tornando-se sistêmicos, reproduzindo assim a logospirataria política, naturalizando-a. Viciam as pessoas na degradante lógica da pilhagem, da usurpação, da apropriação indevida, da concentração e acumulação consumista, adoecendo a convivência social, fazendo do crime e da violência um traço gravemente patológico e presente na coexistência no país. Seus autores se conduzem como sociopatas, indiferentes às regras, julgando-se acima delas, centrados na lógica do “se dar bem a qualquer preço”, levar vantagem em tudo, se locupletarem, endinheirar-se no menor tempo possível não importando o mal causado aos outros, à sociedade, ao meio ambiente, à coexistência. Não muito raro muitos deixam o país, abandonando-o à pior sorte, denegrindo-o em toda parte, desmerecendo a árdua história e a reputação de um povo que sempre lutou para conquistar um mínimo de dignidade humana, arcando com todo o peso dos custos a ele imposto, inclusive dos privilégios destas castas de cínicos e sociopatas.
Nenhum senso de responsabilidade política muito menos de solidariedade ou compromisso ético concreto visualiza-se por parte dos representantes para com as comunidades, as culturas e as coletividades que integram e formam a plural sociedade brasileira. No Brasil de hoje simplesmente inexistem referências de agentes políticos. Na realidade, a política não está mais no âmbito do Estado brasileiro. Este se reduz aos “jogos” de conquista e manutenção de poder entre grupelhos, quadrilhas, máfias, organizações e facções que periodicamente se devoram e fazem tudo, custe o que custar, para alcançar os holofotes e os orçamentos públicos. A política, no entanto, pode ser encontrada no seio da sociedade civil entre aqueles fazem algo, quer seja muito ou pouco, grande ou pequeno, em favor do bem-estar, do desenvolvimento e da qualidade de vida dos outros e da coletividade. Quase sempre não demandam cargos, poderes, recursos, reconhecimentos, prêmios ou outras armadilhas. Esses que, de fato, praticam a política são quase sempre mestres que nos oportunizam a chance de aprender a discernir entre o título e a autoridade, o cargo e o poder, a função e a competência, a aparência e a efetividade. É por meio deles que podemos compreender como é possível um Chico Mendes, uma Zilda Arns, um Betinho e outros.
Será sem fundo esse poço?
Os cidadãos brasileiros, as pessoas que se importam, integrantes decentes da sociedade nacional e de seus segmentos, terão muito mais trabalho, nestes dias, em prosseguir no efetivo combate à corrupção, ao abuso de poder e ao crime institucionalizado. Terão de regressar outras vezes às ruas em novos e significativos protestos e manifestações. Deverão exigir que se persista no combate à corrupção e pressionar para que se realize uma consequente reforma política, que aponte rumo melhor e mais digno para o país. São condições para um novo padrão de institucionalidade democrática e processo essencial de aprimoramento da própria sociedade. Por fim, é preciso que todos os que realmente se importam estejam permanentemente lúcidos e atentos para não verem a cidadania vitimada por outros golpes e a democracia sucumbir à creptocracia, a governos viciados e a facções partidárias degeneradas que operam como organizações criminosas. Do contrário, só restarão os tormentos da lama do poço sem fundo na republiqueta do crime.
Pontes Filho – Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia. Mestre em Direito Ambiental. Graduado em Ciências Sociais e em Direito. Presidente do Conselho Penitenciário estadual. Delegado de Polícia.
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